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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A Bicicleta na Contramão

Artigo da Última Página da Revista Algomais, ed. 67 de Outubro/2011
Clique aqui para baixar a Algomais #67

Outro dia, tive uma reunião cancelada, cheguei mais cedo em casa e fui a pé para o Pilates, unindo o útil (exercício aeróbico) ao agradável (a própria caminhada em si no início da noite). Tudo ia bem até que parei na calçada da Rua Padre Roma, em frente à faixa de pedestre, esperando que o sinal abrisse para atravessar. Quando isso aconteceu, olhando para o lado de onde vinham os carros, quando eles pararam, pus o pé direito na faixa e... Zás! A milímetros do meu nariz passa, como uma bala, trafegando pela contramão, uma bicicleta. Por uma questão de milésimos de segundo não sofri um atropelamento que, com certeza, me traria conseqüências desastrosas.

Atordoado pelo susto, deixei escapar o impropério: “filho da...!”. O cara da bicicleta, que já ia longe pela contramão, fez um gesto obsceno e se mandou entre os carros e o meio fio, prosseguindo impune na sua contravenção quase assassina.

Atravessei a rua com as pernas bambas pensando que se tivesse sido atingido pela bicicleta naquela velocidade, teria ido parar na emergência de um hospital e seria obrigado, se tivesse sorte, a trocar o Pilates por meses inteiros de fisioterapia. Passado o calafrio inicial, foi me mando uma raiva intensa de, fazendo a coisa certa (calçada, faixa, sinal), ser obrigado a passar por uma situação dessa natureza, resultado do avanço de um processo gradativo e constante de descontrole que se espalha por toda a cidade, sem ações disciplinatórias eficazes do poder público municipal na direção contrária. São carros estacionados placidamente nas calçadas, buracos enormes abertos nas ruas que passam horas e dias sem ninguém trabalhando neles, calçadas privatizadas e obstruídas por todos os tipos de obstáculos, carroças enormes tracionadas por humanos e animais trafegando muitas vezes na contramão em horário de rush, caminhões e carros parados fazendo carga e descarga a qualquer hora do dia ou na noite nas vias de trânsito pesado e congestionado, bicicletas e motos trafegando impunemente pela contramão e por cima das calçadas etc. etc. etc.

Depois de passados o susto e a raiva mais intensos, refletindo um pouco sobre o problema, vejo-me levado a concluir que a situação é muito mais grave do pode parecer sob o impacto da violenta emoção. Na verdade, tudo faz crer que no Brasil a administração pública municipal, com raras exceções, e das metrópoles em especial, estão perdidas diante da magnitude, da complexidade e da velocidade dos problemas urbanos decorrentes de um modelo de gestão que, simplesmente, faliu. A imagem que me vem à mente é de um caçador com uma espingarda de ar comprimido numa mata que virou selva e se encheu de todo tipo de bicho peçonhento e carnívoro. Ou, por outra, de guardas armados apenas com cassetetes num ambiente onde os fora da lei estão equipados com metralhadoras e fuzis AR15.

No que diz respeito ao Recife especificamente, penso que estamos caminhando, rapidamente, para ter que fazer um escolha de Sofia entre um trânsito e um ordenamento urbano à moda chinesa (caótico mas “organizado”) ou à moda indiana (caótico e “desorganizado”). Isso mesmo, uma escolha entre o caos organizado ou desorganizado, porque do caos mesmo talvez não tenhamos mais como escapar, infelizmente. Trata-se, portanto, de um tema que precisa urgentemente ser tratado e discutido: as cidades no Brasil travaram e faliram como locais organizados e sob controle. O que fazer? Pergunta que, temo, vamos passar toda a próxima década tentando responder. E o que é pior: não tem solução mágica. A mim, interessa saber, para tentar evitar ir parar, de graça, no hospital: vamos aceitar que as bicicletas andem impunemente pela contramão?

Autor:  Francisco Cunha - @cunha_francisco

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